segunda-feira, 14 de junho de 2010

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Crônicas De Humberto Werneck resgatam a melhor tradição do gênero

Alvaro Costa e Silva, Jornal do Brasil


RIO - É o cronista que confessa: gosta de cemitérios. E, esperançoso, até acha que vai acabar num deles.

Chega a ser paradoxal que haja tanta observação de vida bem xeretada nas crônicas de Humberto Werneck ao lado de tanto tema funéreo. Mas, que fazer?, é a existência. Ou coisa de mineiro mesmo.

Abramos O espalhador de passarinhos & outras crônicas, recém-publicado pelas Edições Dubolsinho, de Sabará, e façamos, por alto, um levantamento. Logo no segundo texto, “O céu pode esperar”, o autor acorda e ouve no rádio a notícia “de que Humberto Werneck havia morrido”. Não satisfeito, vai ler a lápide negra do próprio túmulo e descobre que o inquilino do carneiro nº 143 da quadra 49 era um segundo-sargento da Polícia Militar. Ufa. Ele só não conta se jogou no bicho.

Você sabe o que é a morte macaca? Não? Então leia a página 149 que Humberto, pedindo licença a Pedro Nava, explica direitinho.

Outra: um de seus fantasmas inesquecíveis é o cadáver de Carmen Miranda: “Estava acondicionada num caixão de bronze e podia ser contemplada através no vidro (...) O que mais impressionava era o fato de que Carmen exibia uma caprichada maquiagem”.

Mais uma: Manuel, um de seus amigos cubanos, quer vender um jazigo. São tantas as qualidades do panteón, que a gente até suspeita: fica no cemitério de Colón, em Havana; é “confortável”; e tem seleta vizinhança: os escritores Alejo Carpentier, José Lezama Lima e Virgilio Piñera – três que valem por uma literatura inteira – e a concorrida tumba de doña Amélia Goire de la Hoz que, tendo morrido nos últimos dias de gestação, dizem que deu à luz debaixo da terra.

Ao entrevistar Gilberto Gil e ouvir dele uma frase que jamais irá esquecer – “Minha ambição, agora, é a boa morte” – o cronista aproveita para filosofar: “Ter vivido bem nos enche, lá no fim – venha como ele vier, na contagem regressiva sobre a cama ou no tranco de um enfarto, de um acidente – da tranquilidade de quem fechadas as últimas contas, pudesse dizer: 'Tudo bem, gente, chegou a hora de dar uma morridinha...'”.

Mas nem tudo são flores fúnebres – inda bem – nesta reunião de 65 textos publicados entre 1990 e 2009, os mais recentes no jornal Brasil Econômico, onde o autor milita semanalmente. Como em seus outros livros – uma reportagem biográfica sobre Chico Buarque; uma história da diáspora de escritores e jornalistas mineiros (O desatino da rapaziada); contos da juventude retrabalhados na maturidade (Pequenos fantasmas); o indispensável A vida de Jayme Ovalle; um dicionário de lugares-comuns (O pai dos burros) – o bom trato da língua é uma obsessão, a qual acaba dando assunto para as crônicas.

Entre seus pares, Humberto deve ser o único a nutrir simpatias pela recente e esdrúxula reforma ortográfica. Afinal, ele tem um W e K no nome e está no seu direito de apontar o lado bom da coisa: “A reforma aboliu o trema, exceto nos nomes próprios – em vida de seus portadores, pelo menos.

Faz sentido. Não ficaria bem dar ao ser humano o mesmo tratamento que os estudiosos da língua reservaram à lingüiça. Já pensou a Gisele Bündchen sem essas duas coisinhas que ela tem em cima?”.

Depois de defender palavras como oaristo e períneo (esta, numa deferência ao também cronista Xico Sá), o escritor e jornalista ensina como não se deve fazer: “Quem tem esposa, dessas que falecem, em geral coloca, em vez de simplesmente pôr. Prefere condolências a pêsames. Promove a prosaica dor de cabeça a cefaleia. Alguns, modernos, não abrem a boca sem que de lá não saia um 'disponibilizar', um 'otimizar', um 'alavancar'. Quando dizem 'ativo de risco', estão falando de dólar, não de algum profissional da prostituição masculina. Jogador de futebol já não se contunde, agora se lesiona. O bandeirinha ergue seu instrumento de trabalho – expressão que faz pensar, outra vez, naquele ativo de risco que não é dólar”.

Pois aí está: ao lado da observação e reflexão acerca das miudezas do cotidiano, a graça de contar – que Humberto tem de sobra – é uma das principais características da chamada crônica brasileira, gênero único. É marcante em Rubem Braga, o maior, e na inconcebível fornada dos anos 50 e 60 (Paulo Mendes Campos, Antonio Maria, Fernando Sabino, Elsie Lessa, Clarice Lispector, José Carlos Oliveira, Nelson Rodrigues).

Humberto Werneck bebe na fonte para, com voz própria, continuá-la. O texto que dá título à antologia apresenta um personagem que, se não soubéssemos que é o pai do autor, poderia ter saído da costela do Velho Braga.

Muitas das histórias – a entrevista desastrada com Clarice, a vizinha búlgara em Paris, a vizinha erótica em São Paulo, o marido da pelada da Playboy – trazem o sem-verniz de Fernando Sabino, casos que se passaram com quem os narra, mesmo que precisem ser inventados. A crônica “A implosão do casal perfeito” é um blend de Antonio Maria e Nelson Rodrigues, resultando em Humberto puro, de truz. Brindemos, pois, que a linhagem está salva.

20:18 - 11/06/2010